sábado, 4 de julho de 2015

Palestra


OS SONS QUE VÊM DA RUA: AS CIDADES E O DISCURSO DA CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA 

(Palestra apresentada no 13º SALIPI)

Alfredo Werney Lima Torres (IFPI)

A música popular brasileira sempre esteve ligada, de alguma forma, à ideia de cidade. O próprio conceito de MPB, como argumenta Carlos Sandronni em seu importante ensaio “Adeus a MPB”, surge com a ideia de República, de população urbana. Construir uma identidade brasileira foi uma das questões centrais do período Republicano, sobretudo na época do nacionalismo da Era Vargas. A música popular, como nos mostram pesquisas e estudos, não passou ao largo desse debate: ela foi um dos elementos principais na invenção dessa identidade. 

O samba de Noel Rosa, na década de 30, foi o gênero que se utilizou para representar nossa identidade cultural. A partir dele o Brasil ficou conhecido mundialmente como “o país do samba”. O fato é que, desde os primórdios, o conceito de música popular brasileira está fortemente associado à cidade (“aos sons que vêm da rua”, como nos diz a canção Tem mais samba, de Chico Buarque) e ao processo de urbanização do país. A própria história do samba aponta para essa compreensão: o samba-de-roda da Bahia (dançado por negros) foi trazido para o Rio de Janeiro na época da mudança de capital do país, em 1763. Nesse processo o samba-de-roda, mais ligado às raízes culturais africanas do candomblé, se mesclou com o maxixe (dança urbana do Rio) e com instrumentos do choro carioca. Essa fusão é que gerou o samba urbano como conhecemos hoje. 

No Brasil a canção se tornou “um lugar de mediações, fusões, encontro de diversas etnias, classes e regiões” – como bem observou Marcos Napolitano. Diferentemente de outros países de cultura europeia, a literatura acadêmica se juntou a canção popular e formaram um laço indissolúvel. Isto se deu principalmente a partir da eclosão da bossa nova na década de 60 e por meio das imensas contribuições de Vinícius de Moraes, que uniu escritores eruditos com compositores populares. 

José Miguel Wisnik denominou esta associação entre alta literatura e MPB de “uma nova forma de gaia ciência”. Isto é, a junção entre música popular urbana e as Letras no Brasil se tornou uma espécie de “ciência alegre”, de um fazer, ao mesmo tempo, espontâneo e cerebral. Nesse sentido, compreendemos que a música popular não é apenas um artefato cultural que cumpre com uma função estética específica, em geral associada à expressividade corporal. A canção brasileira foi capaz de marcar identidades e de “inventar” territórios e cidades. 
É importante dizer que na presente comunicação entendemos “cidade” na perspectiva de Roland Barthes e Nestor Canclinni. Esses autores nos mostram que devemos buscar uma compreensão de cidade para além da ideia de espaço físico, arquitetônico. É essencial entendê-la como “texto, trama de signos e associação multicultural de narrativas”. Nesse sentido, vemos que vários espaços urbanos brasileiros foram narrados e tramados, em grande parte, pelo discurso da música popular.

 Noel Rosa firmou a imagem do malandro carioca e de um Rio de Janeiro urbano e moderno. Suas canções são uma espécie de crônica da época, em que o sujeito lírico narra, de forma irônica e despojada, a vida pelas ruas e morros da capital carioca. (Oi, enquanto existir o samba/ Não quero mais trabalhar/ A comida vem do céu,/ Jesus Cristo manda dar!). Dorival Caymmi contribuiu de forma decisiva, sobretudo através de suas canções praieiras, para firmar a ideia de uma Bahia mítica, ainda não tomada pelo conceito de civilização (É doce morrer no mar/ nas águas verdes do mar). Luiz Gonzaga, em seu imenso projeto estilístico, criou toda uma região, o Nordeste. Isto por meio de sua indumentária, de seus arranjos, do seu modo de cantar. Com efeito, a imagem que se construiu de Nordeste se confunde com o próprio universo cantado pelo sanfoneiro pernambucano: um lugar da saudade, da religiosidade popular, dos “cabra valente” e “trabaiador”, da seca, da dor e da miséria social. (A seca fez eu desertar da minha terra/ Mas felizmente Deus agora se alembrou/ De mandar chuva/ Pra esse sertão sofredor/ Sertão das muié séria/ Dos homes trabaiador). 

O Tropicalismo, com sua estética espalhafatosa e moderna, empreendeu uma leitura crítica ao nacionalismo e ao regionalismo estreitos e fechados em si mesmos. Esse movimento artístico propôs a invenção de uma estética pautada nas ideias antropofágicas oswaldianas, que buscava uma síntese entre elementos locais e universais a partir de uma articulação tensa de signos. Numa visão panorâmica, a cidade, nas canções tropicalistas, é múltipla, contraditória, fragmentada. O rural e o urbano, Beatles e Luiz Gonzaga, os sons da rua e do campo, do asfalto e do morro, a leveza da bossa e a explosão das guitarras do rock – todo esse universo de contraste está presente no discurso da Tropicália. Canções como “Tropicália”, “Sampa”, “Parabolicamará”, “Pela internet” e “Alegria, alegria” são obras reveladoras da visão multifacetada e alegórica de Caetano, Gil, Torquato e seus parceiros tropicalistas. (Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas/ Da força da grana que ergue e destrói coisas belas/ Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas). 

O Rock dos anos 80 no Brasil também não ficou fora desse processo de leitura crítica da cidade. Várias bandas que fizeram sucesso nessa época contribuíram para “fixar” ou “descontruir” imagens consolidadas de determinadas cidades brasileiras. Podemos citar alguns dos grupos musicais mais importantes: A Legião Urbana, com sua rica leitura de Brasília; Os “Titãs” com sua leitura corrosiva e concreta da cidade de São Paulo; Os “Engenheiros do Hawaí”, que sintetizaram, de forma feliz, aspectos do folclore gaúcho com a expressividade do rock brasileiro; Os “Paralamas do Sucesso”, que procuraram desconstruir a visão de um Rio de Janeiro como paraíso tropical, por meio de letras musicais bastante lúcidas e elaboradas.

Não poderíamos deixar de mencionar, agora em uma época mais atual da nossa cultura, o movimento “Mangue Beat”, principalmente Chico Science e a banda Nação Zumbi. Através de seus hibridismos musicais e de suas fusões do rock com o maracatu, esse movimento propôs uma leitura atualizada de Recife-PE – que passou a ser interpretada como uma cidade pós-moderna, imersa na lama e no caos urbano (Andando por entre os becos,/ Andando em coletivos/ Ninguém foge ao cheiro sujo/ Da lama do manguetown). 
Após essa breve – e, certamente, incompleta – explanação sobre as cidades a partir do discurso da música popular brasileira, cabe analisarmos duas canções muito representativas, no que se refere à interpretação que elas fazem do Brasil. As canções são Saudade de Itapoã (de autoria de Dorival Caymmi), e Estação derradeira (de autoria de Chico Buarque).

SAUDADE DE ITAPOÃ – Dorival Caymmi

Coqueiro de Itapoã, coqueiro
Areia de Itapoã, areia
Morena de Itapoã, morena
Saudade de Itapoã me deixa

Oh vento que faz cantiga nas folhas
No alto dos coqueirais
Oh vento que ondula as águas
Eu nunca tive saudade igual

Me traga boas notícias daquela terra toda manhã
E joga uma flor no colo de uma morena de Itapoã

Em “Saudade de Itapoã”, presente no disco “Canções praieiras” (1954), estamos diante de uma Bahia pré-industrial, pré-moderna. Trata-se de um lugar mítico, em que o homem convive em total harmonia com a natureza. O sujeito lírico descreve a paisagem de forma encantada e clama pelo vento e pela natureza. Notemos a ausência total de metáforas, de profundidade, e também de conflitos psicológicos nas canções praieiras de Caymmi.

Nessas obras, o mar é sempre o mar físico, concreto. O tempo da canção não é o da velocidade da informação, do ritmo intenso das fábricas e do trânsito das grandes cidades, mas sim um tempo mítico, o tempo do ritual, como no Candomblé e nas religiões de matriz africana. Em linhas gerais, as canções praieiras de Caymmi são solares, concisas, claras, apolíneas. Parecem brotar do nada, como nos disse Arnaldo Antunes e Chico Buarque. Elas revelam uma visão de mundo antes do “desencantamento” provocado pela modernização (antes do spleen baudelairiano).

ESTAÇÃO DERRADEIRA – Chico Buarque

Rio de ladeiras
Civilização encruzilhada
Cada ribanceira é uma nação

À sua maneira
Com ladrão
Lavadeiras, honra, tradição
Fronteiras, munição pesada

São Sebastião crivado
Nublai minha visão
Na noite da grande
Fogueira desvairada

Quero ver a Mangueira
Derradeira estação
Quero ouvir sua batucada, ai, ai

Rio do lado sem beira
Cidadãos Inteiramente loucos
Com carradas de razão
À sua maneira

De calção
Com bandeiras sem explicação
Carreiras de paixão danada

Nessa canção de Chico Buarque (presente no disco “Francisco”, de 1987) vemos uma cidade não mais idealizada e mítica. Estamos diante de uma leitura crítica do Rio de Janeiro, de um sujeito que tem consciência de todos os problemas trazidos pelo processo de urbanização. O lirismo de Chico é, portanto, crítico, enquanto o de Caymmi é nostálgico.

“Estação derradeira” expõe os variados contrastes que existem na formação da cidade do Rio, que já não é mais a “cidade maravilhosa”. Nela está inserido o ladrão, a lavadeira, a religiosidade, o prazer trazido pelo carnaval, a loucura e a paixão desenfreada pelo futebol. Daí a forte metáfora utilizada “civilização encruzilhada”, isto é, uma civilização composta por meio de variadas narrativas, de variados signos, classes sociais e espaços. Essa visão também está presente na imagem de “São Sebastião crivado”. Trata-se de um santo que, crivado por flechas, simboliza o misto de sofrimento e dor. Além disso, ele representa o sincretismo religioso da cidade do Rio, já que esse santo está presente tanto em rituais católicos, como na Umbanda. 

A canção de Chico sintetiza duas visões distintas acerca da cidade do Rio: uma que vê o lugar através do olhar encantado do turista (Samba do avião – Tom Jobim) e outra que vê a cidade a partir de um olhar de denúncia e crítica política (Alagados – Paralamas do Sucesso).

Alagados (trecho)

Todo dia o sol da manhã vem e lhes desafia
Traz do sonho pro mundo, quem já não o queria
Palafitas, trapiches, farrapos
Filhos da mesma agonia

E a cidade que tem braços abertos num cartão postal
Com os punhos fechados na vida real
Lhe nega oportunidades
Mostra a face dura do mal  

Samba do avião (trecho)

Minha alma canta
Vejo o Rio de Janeiro
Estou morrendo de saudades
Rio, seu mar
Praia sem fim
Rio, você foi feito pra mim

Cristo Redentor
Braços abertos sobre a Guanabara
Este samba é só porque
Rio, eu gosto de você
A morena vai sambar
Seu corpo todo balançar
Rio de sol, de céu, de mar
Dentro de mais um minuto estaremos no Galeão
Copacabana, Copacabana

Na canção de Chico Buarque a visão do sujeito lírico é, ao mesmo tempo, encantada e crítica. O eu lírico aponta os problemas gerados pelo processo de urbanização (como a violência), mas não deixa de exaltar o carnaval e a paixão, sem explicação, pela vida. Essa ambiguidade do discurso da canção representa a própria contradição inerente ao processo de formação da cultura brasileira. A estação derradeira seria, dessa maneira, o prazer – ainda que passageiro – proporcionado pelo carnaval. Em Chico Buarque, como observou Santuza Cambraia Naves e Afonso Romano de Sant’anna, o samba é sempre uma forma de romper o silêncio, é uma forma de redenção. 

À guisa de conclusão, reafirmamos que a cidade é um tema que sempre interessou a música popular brasileira. Ela está presente na própria formação do discurso da nossa música. A MPB, tal como a conhecemos hoje, é uma invenção urbana a partir das manifestações culturais afro-brasileiras. Esse gênero musical se consolidou na história de nossas sonoridades e foi responsável por “erigir” inúmeras cidades. O que seria da Bahia sem as sonoridades de Caetano, Gil e Caymmi? E a Paraíba sem o suingue de Jackson do Pandeiro e a sanfona de Sivuca? E o Rio de Janeiro sem Chico, Cartola, Noel, Pixinguinha, Tom Jobim e a bossa nova? E Recife sem o frevo, o Manguebeat? E São Paulo, sem os Demônios da Garoa, a vanguarda paulista, Os Mutantes e os Titãs? E o Nordeste sem o baião de Luiz Gonzaga e João do Vale? Essas marcas sonoras são muito mais do que rótulos e etiquetas comerciais. Elas são a própria construção simbólica e discursiva da noção de “cidade”.




Nenhum comentário:

Postar um comentário