sábado, 25 de abril de 2015





Formas do nada, de Paulo Henriques Britto

Alfredo Werney

BRITTO, Paulo Henriques. Formas do nada. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.


Criar um universo conceitual próprio, por meio de uma gramática particular, parece ser o ponto nodal da poesia de Paulo Henriques Britto. Desde seus primeiros trabalhos, Liturgia da matéria e Mínima lírica, o poeta carioca tem nos apresentado uma dicção muito pessoal, que é resultado da tensão entre formas fixas (algumas inventadas pelo próprio escritor) e a linguagem de forte acento coloquial. Seu modus operandi, mesmo em uma leitura geral, já nos soa como algo bastante familiar: as “frases feitas” empregadas de modo inusitado, os versos despojados, as soluções poéticas salpicadas de doses de humor, a mudança brusca de um registro poético supostamente metafísico para uma conversa rotineira, os expressivos enjambement, as rimas toantes e uma “falsa rigidez” da forma. São procedimentos que, utilizados constantemente pelo autor, apontam para uma ironia do próprio fazer poético e revelam um sujeito lírico que se esmera em captar o trivial e as banalidades do discurso ordinário.

Todo esse universo estético está presente em Formas do Nada, o mais recente trabalho em versos de Britto. É um livro que não se esgota, como se observa em muitas produções poéticas contemporâneas, no puro experimentalismo da linguagem, em um esteticismo estéril e fechado em si mesmo. Trata-se de uma poesia fluente, assentada no ritmo da fala corriqueira, que procura estabelecer uma comunicação direta com o interlocutor, através de um “trovar claro” – por sinal, o título de um dos livros de poemas mais significativos de PH Britto.

Partindo da ideia de um mundo esvaziado de sentido – “rascunho/ folha sem pauta/ pasto de lacunas e rasuras” – o eu lírico busca em seu canto criar formas, por meio de “frágeis teias de aranha tecidas com os detritos da língua”, para dar sentido ao mundo, que afinal não passa de “ar comprimido, aos poucos exalado/ que logo se dissipa na atmosfera”. Entender a poesia como o elemento para preencher essa fenda, entretanto, seria uma solução demasiado simplória para um eu poético desencantado com o mundo, como o de Formas do nada: a todo o instante os poemas sugerem falhas, defeitos de comunicação, quebras de sentido, fraturas e, nem de longe, apresentam-se como solução. Nesse sentido, é certeira a fala de Noeme Jaffe, quando afirma que a poesia do escritor carioca atinge o “avesso da linguagem”. Nela vemos claramente o processo de feitura, as costuras, os rasgos, o residual da linguagem. Há, com efeito, um quê de “oficina” na poesia de Britto – o que não a torna de forma alguma, diga-se, artificiosa. Se for legítima a comparação da linguagem com a trama dos fios de um tecido, vê-se que o poeta é um alfaiate que enseja revelar menos o produto final de seu trabalho do que as sobras de linhas, os retalhos, a própria agulha e a tesoura. O poema que se segue é sintomático:

Até aqui a corda não rompeu,
os ossos aguentaram, e a cabeça –
até que em definitivo anoiteça
e tudo se resolva enfim em breu,
a cabeça vai tocando, fazendo
a transubstanciação de coisa em texto
que é o seu único métier. De resto,
prossegue cozinhando em fogo lento
essa tão adiada refeição
a que ela sequer será convidada.
Paciência. Haverá tempo de sobra
pra se dedicar à contemplação
da folha em branco e outras formas do nada.
Depois, com sorte, restará uma obra.

Formas do nada é uma peregrinação em busca de sentido, uma vez que o mundo está repleto de “imagens que se ordenam/ segundo uma lógica indecifrável, / talvez inexistente”. Por consequência, somos seduzidos a associar o universo conceitual de Formas do nada ao enunciado shakespeariano presente na famosa fala de Macbeth, no ato V: “Apaga-te, apaga-te chama breve! A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco [...]. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado”. Esse espírito, pejado de desencanto, parece permear grande parte dos poemas de Paulo Henriques (não apenas em Formas do nada, mas em outras obras, como é o caso de Macau):

Caminhos que só levam com certeza
A caminhos que vão dar na estaca zero.
Nada de novo. A única surpresa
É constatar que mesmo desespero,

a vaga mariposa persistente
que não se mexe nem com a luz acesa,
termina se tornando simplesmente
uma espécie de enfeite sobre a mesa,

feito esses porta-fotos digitais
em que a paisagem muda pouco a pouco,
talvez escurecendo mais e mais,

como se anoitecesse – quando então
se percebe, como quem leva um soco,
Que a tela mergulhou na escuridão.

Embora se perceba uma poesia de uma dicção muito própria, como já foi mencionado, é possível visualizar nos textos de Britto um diálogo intertextual com os nossos modernistas, sobretudo com Carlos Drummond e com João Cabral de Melo Neto. Em Drummond, o poeta dialoga principalmente com o niilismo de “Claro enigma”, cujo eu lírico despoetiza as coisas do mundo e despreza até mesmo a imaginação – essa “falsa demente”; em Cabral, com a lição da “faca só lâmina” (ou, de forma ainda mais aguda, “a lâmina só gume” do sujeito lírico de Mínima lírica) – que corta o que não é essencial e emprega as palavras em sua carnalidade. Ademais, é notório que o poeta, atento à gramática cabralina, recusa o tom confessionalista:

Nenhuma explicação
Entre o pé e a mão.
Transcendência nenhuma
Entre o sabugo e a unha.

Ao corpo, masmorra sem porta,
Pouco importa que você morra.

Algo digno de nota nos poemas de P.H Britto é o contraponto que o autor faz com a musicalidade de tendência romântico-simbolista, que foi assimilada por grande parte da poesia brasileira do século XIX. Pautados no legado poético de Verlaine ("De la musique avant toute chose"), os escritores dessa época procuravam criar um discurso poético que explorasse, ao máximo, todos os recursos musicais da palavra, tais como assonância, aliterações, rimas internas, efeitos acústicos. Dessa forma, rompiam com a lógica da sintaxe tradicional e suplantavam, muitas vezes, o sentido em virtude do efeito sonoro produzido. Essa técnica foi levada ao extremo por poetas como Cruz e Souza, o que fez com que diversos leitores confundissem musicalidade com eufonia.

Mário de Andrade já nos mostrara, em seu “Prefácio Interessantíssimo”, que a poesia até o século XIX, foi essencialmente melódica, deixando de lado sua dimensão harmônica (polifônica). O intelectual paulista entendia que verso polifônico era aquele que fazia com que as palavras vibrassem uma nas outras (“Arroubos...Lutas Setas...Cantigas...Povoar!...”), diferentemente do verso melódico, em que as palavras estavam dispostas consecutivamente e continham um pensamento inteligível. Na poesia simbolista, em geral, essa dimensão polifônica de que nos fala o autor de “Paulicéia desvairada” foi estorvada pelo colorido melódico, muitas vezes exagerado, das palavras. Na contramão desse processo, alguns autores modernos, como Manuel Bandeira, souberam se desvencilhar de tais armadilhas e estabelecer novas associações entre os dois sistemas semióticos – como se vê em poemas como “Tema e variações”, “Debussyana” e “Berimbau”.

Paulo Henriques Britto constrói uma relação especial entre poesia e música: suas obras revelam uma musicalidade subtendida, mais leve e sugestiva (“música que brota/ onde a palavra era pra ser mais bruta”). Está mais próxima das flutuações do ritmo da fala, das improvisações jazzísticas e das paisagens sonoras da canção popular brasileira – gênero este que o poeta declara, em suas entrevistas, ter grande apreço. Por tais motivos, seu tom nunca é dramático ou declamatório, o eu lírico parece se esforçar para solapar a grandiloquência e diluir as fronteiras entre ritmo poético e ritmo prosaico. E o que, certamente, mais nos impressiona nesse artesanato é o fato de muitos textos do poeta carioca estarem estruturados por meio de uma métrica rígida, não obstante com o uso de formas fixas. Mas é que neles a rigidez é dissolvida pela sutileza da musicalidade e pelo ritmo fluente – que recusa a música gratuita e evidente, além de se opor aos acentos fortes da lira dos simbolistas:

LIMIAR

Uma geografia de dúvidas
lhe percorria todo o firmamento:
serão serafins? será música
isso que martela incessantemente
e não consegue arrebentar?
As perguntas se dissipam no ar.

E um cardume de corolários
atravessava-lhe o desfiladeiro:
então isto é aquilo, e o contrário
só é verdade do princípio ao meio
etc. Isso proporcionava-lhe
prazer não pouco, e uma penca de álibis.

Definitivamente, sou,
ele pensou, com a magnificência
de um pterossauro em pleno voo.
O saber é sua própria recompensa,
como a virtude, concluiu.
E viu que isso era bom. Depois dormiu.

Em linhas gerais, Formas do nada, é um trabalho que, a despeito da fragmentação e das fraturas da linguagem inerente à poesia contemporânea, possui uma forte unidade estilística. No que se refere ao ritmo, às inflexões melódicas, aos temas abordados, aos procedimentos sonoros, os textos são muito semelhantes. Com efeito, temos a impressão de estar lendo um único poema – poema este que “não capta mais que um minúsculo/ ângulo do evento único/ que só durou um segundo”. A nossa leitura do poema-livro de P.H Britto se encaminha para a fatídica conclusão de que é “melhor relaxar os músculos/ e aproveitar o espetáculo”, pois a única ferramenta que dispomos para criar um sentido para a narrativa desordenada do mundo é falha:

Por só dispor destas palavras
Não outras. As que ambiciona,
Mais plenas, mais prenhas, pejadas
de algum sentido além da soma
dos meros significados

das partes – essas não. E sim
nada mais que um somatório
de peças discretas (tão in-
discretas, tantas vezes) que ora

caem constrangedoramente
aquém do alvo, ora de tal
modo extrapolam o pensamento –

nem mesmos destas, no final
das contas. A coisa vai mal.

O poema que fecha o livro, uma espécie de “coda musical”, não poderia ser mais significativo: “Envoi” é uma reflexão, pesarosa, sobre as imprecisões do tempo, que a “tudo distorce” e “em seu tosco código Morse/ de instantes sem rumo e roteiro/ então dá forma a algo de inteiro”. O sujeito poético desse texto conclui, por meio de “retoques e remendos”, que antes que vislumbremos um esboço de algo – um caminho para a transcendência – deparamo-nos, mais uma vez, com a fragilidade da poesia frente a um mundo desprovido de encanto e magia. Todo poema é apenas um “murmúrio/ frente ao amor e sua fúria”.
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Alfredo Werney é mestre em Letras pela UESPI e professor do IFPI (Campus Floriano). Autor de Música e palavra nas canções de Chico Buarque e Tom Jobim (São Paulo, Max Limonad, 2014).

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